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segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Contemporaneidade política e ABC maquiavélico: Putin e Lula?


Nicolau Maquiavel ilustrou-se como uma figura, ao decorrer dos séculos, estereotipada pelas diversas interpretações políticas herdadas de seu livro O Príncipe. Para o poeta, diplomata, músico e, finalmente, cientista político, era necessário a criação de um campo de estudo próprio para os políticos, fundamentando toda a visão realista aos governantes e ao conceito da evidente inevitabilidade de se fazer política. Este “pai da política moderna” concebeu a concepção de verdade efetiva das coisas e denominou que a política não deveria seguir regras morais e sim regras próprias, despertando a consciência coletiva de que, se existe algo em comum entre todas as nações e todas as culturas, é a busca pelo bom governo, pela digna coletividade. 

Maquiavel determinou que duas coisas sempre acompanhariam o potencial do homem: sua fortuna e sua virtú. A primeira seria a capacidade objetiva de mudar a história, a sorte sendo favorável ou desfavorável ao contexto em que o príncipe será inserido. E a virtú viria da capacidade subjetiva de mudar a história, da deliberação madura, do esforço de pôr ordem. Portanto, metade de nossas ações é governada pela sorte, de certa forma predestinada, e a outra metade está norteada pelas nossas irremediáveis tentativas de lidar com a desordem natural do homem. O fato é que seus ensinamentos vão além do seu tempo e, por isso, Maquiavel se mostra um clássico que até hoje precisa ser estudado diante das posições políticas e geopolíticas globais. 

Vladimir Putin, político peculiar, dialoga abertamente com as teorias maquiavélicas. Presidente da Rússia desde 1999, Putin tipifica a frase “o fim justifica os meios” e traz consigo a rigidez aos rebeldes chechenos, o resgate do nacionalismo russo e as atitudes que lembram em parte o regime soviético e o czarismo. A Rússia, antes de Vladimir Putin, era sinônimo de piada mundial sob a presidência de Bóris Yeltsin, notório bêbado, que delegava uma das piores crises econômicas da história do país. Desse modo, eis sabiamente a razão para crescer a força de uma citação maquiavélica: “Assim, quando a nação encontra-se ameaçada de deterioração, quando a corrupção alastrou-se, é necessário um governo forte, que crie e coloque seus instrumentos de poder para inibir a vitalidade das forças desagregadoras e centrífugas.”

Ergueu-se sobre as raízes fortes da fortuna russa um príncipe pronto para governar com mãos de ferro um país desestabilizado economicamente e socialmente. Sua condição objetiva para mudar a realidade do país nasceu justamente do sentimento e do descontentamento popular atropelado por uma ordem de poder completamente nula. Entretanto, fica evidente que, ao ter uma fortuna de tamanha dimensão, o novo presidente iria mostrar a verdadeira maneira de “fazer política”. Vladimir Putin, sendo antigo diretor da KGB e ex-primeiro ministro, começou a construir seu império sobre as cinzas de uma Rússia devastada pela imagem internacional, envergonhada frente às potências mundiais e desgostosa com a situação econômica. Futuro mito e herói nacional, ele conseguiria fazer da Rússia o novo Oriente médio para a Europa. Mostrando ser um homem de estratégia, conseguiu deixar o continente europeu dependente do gás natural russo e assim emergiu economicamente. 

Retirando o país da crise e trazendo de volta a Rússia da Guerra Fria, capaz de afrontar os Estados Unidos da América, Vladimir Putin ressuscitou o sentimento nacionalista russo e mostrou-se um grande governador de virtú, crescendo aos olhos da população. Um príncipe capaz de mudar a história da Rússia, capaz de a tornar uma nova potência energética, militar e política nas bancadas internacionais. Em nome da elevação russa e no palco do sucesso e superioridade recuperada após anos na platéia, o país descortinou inúmeras vezes o que Maquiavel apropriou como sendo um governante digno de suprir sua população, mesmo que as medidas utilizadas tenham sido lícitas ou não, legais ou não, cruéis ou não. Não é à toa que o grande dilema maquiavélico se dispara na paisagem do país euroasiático: “É melhor ser temido do que ser amado.”

Desse modo, é evidente a razão pela qual Putin até hoje se mantém no poder: a herança Yeltsin de uma realidade russa deplorável é vista como a fortuna ideal para se governar avidamente a favor de uma transformação econômica positiva no país, perpetuando e resgatando a imagem de uma Rússia com poderio internacional e guiada por um governando de virtú.

Contudo, não é preciso ir tão longe para se observar uma grande relação de liderança contemporânea com os princípios de Maquiavel. O Brasil mesmo tem em seu legado um nome que durante muito tempo se concretizou como sinônimo de herói nacional: Luiz Inácio Lula da Silva. O líder sindicalista brasileiro nasce da citação maquiavélica “Quem se encontre à frente de uma província diferente, […] tornar-se chefe e defensor dos menos fortes, tratando de enfraquecer os poderosos e cuidando que em hipótese alguma aí penetre um forasteiro tão forte quanto ele.” Foi dessa maneira que Lula ascendeu em meio aos oprimidos para representar aqueles que nunca haviam tido verdadeira representatividade. Sua fortuna foi evidente: a crise da inflação e o plano real de FHC estabilizados na economia, mas inerentes à necessidade de desenvolver políticas sociais para o povo. A população clamava por um líder que a entendesse, que olhasse para a fome e a para a seca no Nordeste e não apenas para as privatizações que pareciam avançar desesperadamente, E, como dito pelo próprio Maquiavel, o Príncipe que é eleito pelo Povo tem mais poder do que aquele que fora eleito pelos aristocratas.

Assim, Lula elegeu-se em um palco de descontentamento social e passou a ser o herói que ergueu-se: o Gandhi brasileiro. Sua fortuna foi boa e eficiente, com o apoio do povo que precisava. Com o legado do bolsa família, conseguiu mostrar-se um governante que prezava pelo aprimoramento da cidadania além do aprimoramento da economia. Tornou a ser um governante de virtú aos olhos do nascimento de programas sociais como o Fome zero, o Peti, o Primeiro Emprego, FIES, ProUni, entre outros. Mas, acima de tudo, foi um governante de virtú aos olhos do povo.

Maquiavel não diz o que é o poder substancialmente, mas garante que negar fazer política é eximir-se de fazer história. O que faz o sucesso do príncipe é a combinação efetiva da fortuna com a virtú, o que aconteceu em ambos os casos contemporâneos de Lula e de Putin. São realidade diferentes, mas os dois líderes guiaram a nação para um novo caminho ansiado por todos e virtuoso para ambos governantes manterem-se no poder através de uma conciliação entre força e consentimento. Afinal, o legado deixado por Maquiavel não sempre girou em torno de quem seria temido e de quem seria amado, mas sim de quem seguiria a vertente maquiavélica de que a um príncipe não é essencial possuir todas as qualidades mencionadas, mas é bem necessário parecer possuí-las. E tanto o sindicalista brasileiro quanto o atual presidente russo souberam gerenciar muito bem esse ensinamento em suas imagens perante a população. Eis, portanto, o então contínuo ABC maquiavélico, que permeia a nossa “ordem e progresso” e direciona o futuro da Rússia.

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